Estar no mundo e compreender a complexidade das situações e conjunturas na quais vivemos e que demandam decisões e posicionamentos, se queremos realmente exercer a liberdade de pensamento e de escolha. Preparar o adolescente e o jovem para o exercício do pensamento crítico é desafio intransferível da escola no mundo das controvérsias multiplicadas e magnificadas nas redes sociais. Refletimos sobre o assunto na primeira coluna de Vera Alice Cardoso Silva.
Desenvolver o pensamento crítico
Esta é uma meta colocada como prioritária nas várias concepções em discussão sobre a reforma do ensino médio no Brasil. Para seus proponentes, tal reforma é necessária para assegurar que a escola prepare os adolescentes e jovens brasileiros para o exercício de uma cidadania plena. Esta deve incluir tanto a preparação competente para a entrada no mundo do trabalho como a aquisição de habilidades para compreender o mundo em que se vive e nele atuar de modo a fazer prevalecer a vida boa, isto é, o progresso contínuo de todas as pessoas e povos, com respeito à natureza e aos direitos humanos.
Como se coloca, nesta concepção, a dimensão do pensamento crítico? Trata-se aqui de reconhecer que o mundo dos adolescentes e dos jovens é hoje o espaço globalizado, resultante da superação irreversível das barreiras tecnológicas e culturais no âmbito da comunicação. Se, por um lado, o mundo continua dividido pelas fronteiras dos Estados nacionais – e este aspecto da organização internacional ainda abriga conflitos dramáticos – por outro lado, as sociedades nacionais estão cada vez mais unificadas por padrões de consumo e estilos de vida difundidos pela internet através de propaganda e das redes sociais.
A modernidade líquida
O filósofo Zygmunt Bauman ressalta a fluidez dos valores e a volatilidade das instituições que organizam a convivência dos indivíduos e dos coletivos humanos no contexto da globalização dos meios de comunicação. Vivemos em um tempo que ele denomina de modernidade líquida, um tempo sem referências institucionais e éticas sólidas e amplamente compartilhadas para orientar as pessoas e os coletivos humanos em suas decisões e escolhas. É neste ambiente de polarizações e de individualismo exacerbado que se impõe o exercício do pensamento crítico para orientar posicionamentos individuais em meio à babel de opiniões, movimentos sociais, polêmicas ideológicas, religiosas, políticas.
Perguntas dramáticas demandam posicionamentos. Algumas delas: liberar totalmente o uso de drogas?, permitir o livre comércio de armas?, expandir livremente o uso da inteligência artificial?, liberar o aborto e a eutanásia?, permitir qualquer tipo de experimento científico com células-tronco?, expandir a produção de alimentos transgênicos?, aceitar sem restrições a exploração de recursos naturais finitos (caso de recursos minerais, por exemplo)?, aceitar como legítimas e válidas toda e qualquer manifestação identitária que se organizar no plano público, impondo mudanças nas normas de convívio social? E tantas outras, que vão surgindo à medida que a modernidade líquida abre espaço para formas novas de afirmação de indivíduos e de coletividades que não mais se vêm como parte integrante, integrada e reconhecida em uma sociedade nacional.
É neste ambiente, então, que o desenvolvimento do pensamento crítico passa a ser componente essencial da educação integral que vise a preparar os adolescentes e os jovens para o enfrentamento de desafios e polêmicas do mundo globalizado, palco da modernidade líquida.
A sabedoria
No processo de modernização das sociedades, o pensamento crítico está associado à abordagem racional no estudo dos fenômenos naturais e humanos. Essa abordagem é responsável pelo desenvolvimento de campos especializados de conhecimento científico, superando visões míticas e religiosas do mundo. O pensamento crítico se baseia no exercício da lógica argumentativa e na construção de explicações baseadas em fatos comprovados e em experimentos replicáveis.
Não pode ser exercido sem a contribuição do conhecimento científico mobilizado para o debate de questões polêmicas formuladas em termos de abordagens transdisciplinares. Para o filósofo da educação Edgar Morin, a principal tarefa da atividade pedagógica no mundo atual é a de desvelar a complexidade dos fenômenos naturais e humanos, visando a assegurar sabedoria e eficácia do domínio humano sobre eles. O filósofo acentua a dimensão da sabedoria, só possível na perspectiva da transdisciplinaridade, pois o conhecimento acumulado pela humanidade, se abordado de modo compartimentado, pode servir para o bem ou para o mal.
A importância da escola
Apreender a dimensão da complexidade dos fenômenos humanos e naturais implica compreender e aceitar a necessidade de múltiplos olhares- científicos e éticos – para explicar em profundidade contextos humanos que se apresentam como problemas ou desafios coletivos da humanidade no mundo globalizado.
Nesta perspectiva, a escola passa a ser a instituição mais habilitada para promover debates e reflexões que estimulem a lógica argumentativa, que é a expressão mental e oral do pensamento crítico. Este tipo de exercício está diretamente associado ao ensino das ciências e à identificação de controvérsias éticas do mundo atual. Cada adolescente e jovem seria, assim, estimulado a formular seu posicionamento de modo coerente e consciente, face aos desafios do mundo em que vive e no qual deve atuar, sem desconhecer o progresso científico já alcançado e sem negar a dimensão ética da convivência social, o que implica opção por valores e visões de mundo, muitas vezes contraditórios, que competem por adeptos na modernidade líquida.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
MORIN, Edgar. A cabeça bem feita. Repensar a reforma; reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
Vera Alice Cardoso Silva
Professora aposentada do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Doutora em História Econômica, Social e Política da América Latina pela Universidade de Illinois em Urbana – Estados Unidos. Mestre em Ciência Política pela UFMG. Participou de pesquisas e do projeto de reforma do ensino médio do Sistema SESI de Ensino. Atualmente, é pesquisadora associada do Instituto Cultural Amílcar Martins.